sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Ao que vai chegar

"Sei que me despeço antes do desfecho, antes que a dor ou o dia desfira.

A noite afinal dispara. Vou no vácuo, no intervalo harmônico entre dor e nada, acuado em corpo único, vivendo do próprio fígado"

Armando Freitas Filho, morto ontem

Se quer vir, aproveita que eu estou desarmado. Em muito breve, estarei livre das amarras que me adoeceram tanto nesses últimos dez anos.
Se vier, é preciso que você entenda que os tempos são outros. Embora a lucidez e a percepção tenham melhorado, já não tenho a memória prodígia que tinha, já não tenho o mesmo vigor físico, e tudo costuma doer um pouco mais do que doía.
Passei a vida contaminando as pessoas com a letra e a música que leio e ouço. Hoje ninguém quer prestar atenção num poema. Se vier, venha disposta a compreendê-los, porque compreendendo, me entenderá melhor. Porque sou parte encarnada de tudo que li e ouvi.
Traga seu coração afeito à boas horas de conversa, o riso frouxo, a mania de ler Augusto Cury. Talvez seja tarde pra gostar de uma auto ajuda, mas quem sabe o tempo?
Procure se acostumar com meu cansaço, com minha insônia (e consequentemente a minha necessidade de tomar meus remédios no horário), com meu desânimo. O tempo só anda para frente e passa quando menos a gente espera. Não fique reclamando  quando me sinto velho, pois afinal, a velhice chegou mesmo.
Não se surpreenda se me chateio demais com pequenas coisas. Minha fragilidade para declinar frente aos desvios é uma marca da minha história. Gostaria de ter sido mais reacionário, de brigar mais pelas minhas crenças, de enfrentar mais os enchovalhos que enfrentei. Agora é tarde.

Finalmente, como você já percebeu, aprenda a amar aqueles que amo. Ficaram muito poucos, mas é tudo que eu tenho na vida.


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