sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Dom Casmurro sem Capitu

O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.

Valter Hugo Mãe, A desumanização

Tenho um tio que se acha o rei da imunidade. Desfila pelas ruas de Miracema sem máscara, conversa normalmente com as pessoas. 

Encontrei-o no mercado ontem, numa das pouquíssimas vezes que precisei sair de casa. Tentei manter uma distância mínima, mas ele pareceu nem ligar. Não me ocorreu chamar sua atenção, inclusive do desrespeito ao próximo, mas acho que pouco valeria. Mesmo assim chamaria, se já não estivesse com quatro ou cinco outras coisas na cabeça, tipo lista de compras, reunião a caminho, e-mail sem resposta, mensagem não lida. Têm sido assim os meus dias.

Além de me ocupar de muito trabalho estou cada vez mais casmurro, mais confinado, tenho medo até de tirar o carro da garagem e visitar um amigo que anda mais isolado que eu. 

Outrora trabalhava ouvindo música. Era fantástico. Hoje não consigo mais. As coisas vão se duplicando e não há espaço. Tento fazer intervalos de 15 minutos e aí pego um livro, o violão, ou ligo o Itreco a todo volume, que deve estressar a vizinha. 

Acho que meus resultados estão comprometidos com a multiplicidade das coisas. 

Sinto muita falta de conversar com Ronaldo no Damasco. Nossas conversas inúteis na hora do almoço eram sempre muito importantes. Amigo é aquele que você gosta de conversar, e Ronaldo é uma ótima conversa. Imagino Ronaldo ilhado no Leblon, ensimesmado como eu.

domingo, 16 de agosto de 2020

Da inutilidade das coisas

 



Acordo domingo e esse resto de frio miracemense. 

Sei que o café já está pronto pelo burburinho da máquina de lavar. Uma alegria passageira trespassa meu olho seco: terei alguém para conversar hoje sobre qualquer bobagem. - Estão morrendo nossos conhecidos. Reluto em dizer "qualquer hora vamos nós".

Tomo o café e meus seis comprimidos matinais. Devagar eles foram se ocupando do meu estômago, do meu fígado, dos meus rins e tentam me manter de pé e avante, como diria minha psiquiatra.

Ligo o telefone. Ainda tenho esperanças. Não sei do que, mas ainda as tenho. Nada, além dos bons dias habituais. Não há qualquer esperança.

Pego o violão e começo a tocar a Rosinha dos limões/O marujo português, dois fados gêmeos. Ajusto uma posição aqui, tento facilitar. Acho que nunca vou conseguir tocar um fado como tocam os portugueses. Meu fado soa canção sertaneja. Desanimo.

Preciso passar o meu caderno de cifras. pois a memória anda traindo. 

Para que tudo isso? Um violão maltratado, um domingo vazio, uma perspectiva de nadas? Onde estarei agora, senão num emaranhado de desesperanças, dores antigas, isolado aqui entre mil filmes, discos e livros inumanos?

sábado, 15 de agosto de 2020

Eu queria cantar-te um fado





"O sal das minhas lágrimas de amor criou o mar"

Vinícius de Moraes


Logo para você que detesta fados.Que não enxerga as almas sombrias, as noites vazias, as sombras bizarras. 

Eu me lembro exatamente desse ponto de corte. Foi numa viagem de carro para não sei aonde, em que eu ainda compartilhava minhas canções de afeto em alto volume e você gostava (será?). Era uma antologia longa de fados e lá pelo meio, quando Zambujo cantava A casa fechada, ouvi o primeiro chilique musical: vou ter que continuar ouvindo isso aí? A pergunta, se não foi exatamente essa, foi parecida. Dali para frente, o rádio do carro, por todos os anos seguintes praticamente emudeceu.

Hoje eu pensei de novo numa cena surreal: no dia do nosso casamento, após a troca de alianças, eu teria contratado um violão e um bandolim e cantaria um fado. Não está muito claro qual deles. mas na maior parte das vezes eu penso nesse que dá título ao texto. Não está muito claro o número de aulas de canto que teria que fazer para chegar perto de um Carlos do Carmo. Obviamente nunca chegarei.

Sonhei muitas vezes, como se pudesse convencê-la, que dessa vez o fado entraria em você de um jeito novo, e você não muxoxaria nem torceria o nariz. Sonhei que seria como aquela noite lá no início, em que tomamos vinho e ouvimos Chavela Vargas, e seus olhos felizes pareciam gostar.

Não sei também se os convidados iriam respeitar a minha escolha, acredito que muitos ririam do meu fado triste. Certo é, que nesse meu sonho inútil, tudo mudaria na segunda estrofe. Um silêncio de pedras tomaria conta da casa de festas e só se ouviria minha voz. A minha voz de Carlos do Carmo, cantando esse fado estranho e magoado, que pudesse ser sentido tão na alma como eu.


terça-feira, 11 de agosto de 2020

A bipolaridade na pandemia

 Cem mil e a gente já começa a se preocupar se estará nos próximos cem, previstos para outubro.

Cem mil e a gente já vai se acostumando com a lista de amigos e referências que vão nos deixando sem qualquer rastro e é triste saber que não poderemos mais vê-los ou ouvi-los, 

Cem mil e continuamos sem ver e abraçar os que resistem. Até conversar está proibido, que não seja por vídeo, telefone ou escrita, que já esgotaram toda forma de afeto. 

Cem mim e nenhum filho no dia dos pais, o que não é incomum e nem tão importante (nunca dei muito valor à dias especiais), mas dessa vez doeu de uma forma mais aguda.

Cem mil e continuamos desgovernados e cada vez mais expostos, menos seguros, dependentes de vacina ou imunidade de rebanho, que sabe-se lá quando virão.

Cem mil e a ciência nunca foi tão aviltada pelo curandeirismo populista, que também mata e ajudou a consolidar esses cem mil.

Cem mim e já se vão quase cinco meses de isolamento, algumas noites de desespero, vazio dor, desesperança.

Um minuto de silêncio pelos familiares que perderam cem mim  e outro por nós todos que resistimos com nossas próprias convicções, que vão ficando cada vez mais frágeis.

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A ausência da Diô nos dias ímpares me permite anarquizar meus horários. Hoje almoçarei queijo coalho com banana. Lá pelas 5, quando terminar a última reunião do dia, almoço. Tilápia cozida com molho de camarão lixo e arroz com brócolis deixado pela Diô ontem. Na medida para minha dieta.

Faço meu queijo coalho com banana num forninho elétrico que ganhei num sorteio num evento. Certamente a única coisa que ganhei em algum sorteio. Ficou anos encostado na Tijuca e alguns encostado em Niterói. Sem uso. Hoje tem despertado minhas habilidades culinárias. Muito útil!

Sou infernizado pelo desafio de abandonar os doces. desde ontem, só como fruta, Acho que dura uns três ou quatro dias, até que a Dona Iolanda me mande aquela cocada ou aquela palha. Jesus!!

Estudo violão às 11 da manhã e respondo e-mail de trabalho às 9 da noite. Nesses dias ímpares, as coisas costumam ser assim.

Estou perdendo novamente o controle da minha insônia. Durmo normalmente mal, assustado com fantasmas no início da noite e sonhando muito depois do xixi da madrugada. 

Tento não usar o traço acostumado, como ensinava Rômulo Quiroga, um pintor boliviano. Estou quase atingindo a condição de ermitão sem caverna.


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Diário de bordo

"Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer"

Voltei às minhas viagens solitárias e à música alta e ao ar gelado. Voltei ao silêncio (naturalmente aviltado por música) e à solidão da Serra do Capim. Muitos dias num único dia. Anotei mentalmente, mas já devo ter esquecido de algumas, as delícias que o aleatório me mandou nesse último trecho.

1) Que Ella Fitzgerald fez a versão definitiva de I love Paris. Pode morrer aqui, sem mais comentários. A frase se esgota. Não há dúvidas. já foi ouvida mil vezes. Mas cada vez que se ouve, se amadurece um pouco. Amei (e ainda amo) Paris muito mais por conta da canção de Cole Porter do que propriamente de ter ido a Paris. Aliás, nem seria preciso ter ido. Bastava a canção do jeito que Ella gravou.

2) Que Silvério Pessoa é o legítimo herdeiro de Alceu Valença, Escrito assim parece coisa de crítico fazendo resenha. Mas o alumbramento bateu na estrada quando Silvério cantava Balançaram a roseira, da canção de afeto 35. Silvério é o camaleão das folhagens, que Alceu sempre foi, e até com algum requinte a mais.

3) Que Luisa Lima está cantando maravilhosamente a ciranda de Rafael Altério. Foi uma das músicas que voltei oito vezes. Há uma conexão aguda entre mim e minha filha. Pois a ciranda só fez fortalecer essa conexão, e ao mesmo tempo entender que Luisa criou luz própria, de um brilho forte e sereno.

4) Que ainda há muita coisa obscurecida no repertório de Noel Rosa que merecia ir para as FMs (que sonho!) Ouvi várias vezes esse A dama do cabaré. Aprendi mais uma vez que "quem é da boemia, usa e abusa da diplomacia, mas não gosta de ninguém",

5) No último trecho, depois de Estrela Dalva, tirei do aleatório e vim ouvindo Drummond. Principalmente os Versos à boca da noite (4 vezes), a Morte do leiteiro (2 vezes) , a Morte no avião (2 vezes) e o Desaparecimento de Luisa Porto (3 vezes).

Cheguei feliz, sem dores, à minha cidade. Meu lugar é aqui. Sempre foi.


terça-feira, 4 de agosto de 2020

Burn out

A pandemia trouxe com ela uma nova modalidade de trabalho: em casa. 
Alguém pode imaginar que, dentro de casa, trabalhamos com mais calma, podemos desenvolver nosso trabalho e nossos resultados  com mais fluidez e qualidade.
Nem sempre é assim. 
Tenho participado algumas vezes de duas reuniões ao mesmo tempo, fritando o peixe, olhando o gato e o telefone. É algo perturbador. 
E as ferramentas de trabalho - whatsapp, e-mail, ligações, ficaram cada vez mais intensivas, tocando todas muitas vezes ao mesmo tempo e sem limites de horário.
De forma de, de segunda a sexta-feira, sobra muito pouco para a sanidade.
Tenho sentido esses efeitos mais intensos no último mês. 
As coisas pioram muito quando tenho que cumprir meus prazos, como pagar uma conta. Já paguei contas duplicadas, atrasei por esquecimento, transferi dinheiro errado e só venho piorando. 
Além disso, há o tempo de solidão e  vazio que a pandemia trouxe. Tenho sentido falta de, ponhamos assim, tomar uma cerveja no Bunda de Fora. Logo eu, que parei de beber. 
Estar em Miracema melhora um pouco a situação. Tem sempre um amigo por perto, sempre um filho por perto, e tem quem cuide de mim.
E de vez em quando eu pego a reta e caminho até a rodoviária da cidade com um ímpeto de não enlouquecer.
Eu sei que muita gente deve estar passando por isso. Alguns amigos saíram de férias. Estão de férias em casa. Tenho inveja deles. Acho muito difícil que conseguisse fazer dessa forma.
Espero que tenhamos ainda o tempo de rir disso tudo. 
E valorizar cada abraço possível quando for possível um abraço.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Do meu fruto sem cuidado que ainda verde apodreceu

"Dá um beijo nos amigos
E um trambique no armazém
Se perguntarem por mim
Diz que morri, mas vou bem


Assinei hoje o último documento que me ligava à Tijuca de Aldir Blanc
Deixei por lá um coração cansado demais para continuar batendo.
E uma relação de amor diferente, acompanhada por um incômodo estranhamento. Um estranhamento que foi motor de propulsão e distanciamento. 
Não há outro exemplo parecido com esse na minha vida. Provavelmente, nunca me dei tanto, nunca sublimei tanto coisas tão delicadas para mim.
Todo dia que me resta terei que perdi perdão a filhos, amigos, irmãos (já tive dois), por tê-los deixado tão em falta. 
Nunca me senti tão traído, nem quando fui traído de fato.
Nunca me senti tão derrotado.
Não há nada para contar sobre isso, nada a aprender.
Viver foi desviver, fazer foi desfazer, mentir foi desmentir, contar foi descontar. 

Nana Tom Vinicius

Depois do petardo que foi o disco com canções de Tito Madi, Nana Caymmi oferece esse Nana Tom Vinicius, tirado de  canções feitas pela dupla no final dos anos 50.
É o mais do mesmo mais bonito que já saiu nos  últimos anos. 
Quando se ouve Por toda minha vida, percebe-se que há algo de muito novo, muito delicado e muito bonito na canção de Tom e Vinícius. Muitos o fizeram com maestria, inclusive a própria, mas ninguém fez como Nana faz nesse disco.
Até o Soneto de Separação, talvez a pior canção de Tom já feita para um poema de Vinícius, fica bonito.
Canções mais obscuras da dupla como Luciana e Canção do amor demais (que só se conhece pelo título do disco de Eliseth) ganham uma nova oportunidade de serem ouvidas e degustadas com cuidado.
Contribui de forma simbiótica, os arranjos do irmão Dori. Dori é um caso a parte. Poderia gravar o mesmo disco e talvez ficasse tão bonito quanto. Recomendo ouvir Dori cantando o Samba em Prelúdio no disco de Mário Adnet Vinícius e os maestros. É algo de sublime. Ontem a noite, não conseguia parar de ouvir.

Nana Tom Vinicius veio para ficar. De preferência em disco. Agradecido ao SESC por permitir esse alumbramento, e seria muito bom se o  produzisse em long play. Para ouvirmos com a melhor fidelidade possível.
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Retorno à minha escrita banal depois de 4 meses isolado. Espero que meus dois leitores não tenham esquecido do blog.

Travado

"Diferente o samba fica Sem ter a triste cuíca que gemia como um boi A Zizica está sorrindo Esconderam o Laurindo Mas não se sabe onde ...