segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema.

Paulo Mendes Campos


O amor acaba. No meio do luto, no meio da dor, no meio do enfrentamento. Acaba porque não há mais sentido. Porque o conjunto das muitas diferenças não aproximou o amor. Acaba depois de muitas recaídas. Acaba porque não há mais espaço para o amor. Cheio de filhos, esperanças, desagravos, o amor acaba. Acaba porque nem a rotina favorece e não há mais tempo para o amor. Acaba quando não há mais viagens planejadas nem rosas para surpreender. Acaba quando as distâncias se acomodam a ponto ser mais cômodo cada um ficar no seu espaço. Acaba quando não há mais tempo para o amor. Acaba quando nada converge e tudo afasta. Acaba quando os destroços são inevitáveis e já não há qualquer possibilidade de diálogo. Quando emudece. Quando o silêncio se transforma em raiva. Quando a raiva é algo doentio. Acaba sem um até logo. Acaba por mensagem. Acaba quando não há qualquer chance de ser restaurado. Acaba quando não há mais nada para dividir. Acaba no meio de uma dor estrangulada, que não cicatriza.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Clarisse, Aldir e Cristóvão

Acredito que tenha sido um dos poucos privilegiados a ouvir Novos traços, o disco lançado por Clarisse Grova sobre a obra de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos em 1997. 
Até onde eu saiba, não tocou no rádio, não foi alardeado pela crítica, e parece pertencer a um seleto grupo de "others" como eu. 
Enquanto nossas rádios, com honrosas exceções, se limitam a tocar a música fácil, ouvir Novos Traços se tornou uma bênção nos útimos anos.
O disco começa com o enredo Cravo e Ferradura, com uma batida crescente que vai tornando cada vez mais vívida a canção: "um balbucio , um mugido, um som de tragédia e circo, um som de linha de pesca, som de torno e maçarico", coisa que só a letra do Aldir consegue expressar. 
A segunda música é A gente chega lá. Me agradam muito os versos: "Samba, meu amigo verdadeiro, abraça o Baden e o Paulo César Pinheiro, diz a eles que despedaçado, é que eu me sinto inteiro pra recomeçar". 
"O avô em feira,estuprou robô cavalo, sangrou macho na peixeira, pôs a honra rente ao ralo", versos do baião Um avô pefelino, dedicado a um velho senador baiano. 
Gosto especialmente de Não tava pra peixe, e cheguei a aprender suas notas, mas a preguiça mental acabou levando da minha memória fóssil. 
A verdade é que 27 anos depois, esse disco continua fresco, surpreendente e emociona sempre que é tirado da gaveta. 

Nesses dias assisti a duas peças que foram alumbramentos para mim, tal qual Novos traços: a peça "Não entrego não", com Othon Bastos, 91 anos, irrepreensível e o filme "Ainda estou aqui", com Fernanda Torres. 

Uma coisa leva a outra e a peça acabou me trazendo de volta o disco Georgete Fadel canta Gianfrancesco Guarnieri. Não paro de ouvir, mas aí já será motivo para outra conversa.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

ET CÉTERA


"Pois percebi que o que penetra

Não é o total

Nem principal

é o ET CÉTERA"

Tatit e Ná

Disclaimer é o que há de melhor no streaming atualmente. Principalmente por trazer de volta o ator Kevin Kline, que há muito não via, mas também por Cate Blanchett e Sacha Baron Cohen. Dirigida por Alfonso Cuarón de forma cirúrgica e densa, sem economias, o drama familiar soma muitos pontos para  a Apple TV. Ninguém tem feito nada tão bem produzido nem com tanto capricho quanto o canal.

Também na Apple TV, a ótima Falando a real, com Harrison Ford fazendo um terapeuita com Parkinson. Estou vendo devagar, mas gostando. Já dos filmes produzidos por eles, ainda não consegui terminar Lobos e nem Os provocadores. Acabei parando no meio.

Estou vendo e gostando de Pinguim (HBO - não consigo chamar MAX!). Colin Farrel é sujo como o personagem, que se perde (e se encontra) a cada episódio. O episódio quatro é em particular uma pequena obra prima. Não dá para passar desapercebida a ótima atuação de Cristin Milioti como Sofia Gigante. 

Passei três dias intensos em São Paulo. Deu tempo para rever e jantar com amigos queridos, mas especialmente deu tempo para ver Ná Ozzetti e Luiz Tatit. Gosto muito dos dois, e dessa vez, aguardei o autógrafo. O show da dupla foi valorizado pela participação de duas vocalistas das quais não me lembro do nome, mas o que imperou foi a música de Tatit e a voz de Ná. 

Acho muito estranho que entre meus amigos queridos, ninguém saiba sequer quem são os dois. Acompanho desde os primeiros discos do Rumo. O Rumo ao vivo e o Rumo aos antigos foram tranformadores na minha visão da música.

Tenho lido, e gostado bastante, as crônicas do Aquiles do MPB4 no site do IMMuB (https://immub.org/noticias/colunista/aquiles-reis). Aquiles escolhe os discos pelo gosto musical. Não espere críticas,  mas resenhas muito boas e escritas com uma leveza muito grande. Trabalhos novos, pouquíssimos divulgados, são desvendados com acolhimento pelo Aquiles.

Semanas extensas de trabalho acompanhadas de pouco ou nenhum reconhecimento, finais de semana que não cabem no descanso (quando se vê, já é segunda feira de novo), um grande esgotamento ocupando todos os espaços. Vamos caminhando.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Um riso de aurora acolheu meu ocaso

 


Meus domingos são tristes em geral. Esse não foi diferente. Apesar do aniversário do meu fiho e das comemorações, terminei o dia amargo e travado. No fim da tarde, mais uma derrota do Fluminense soou como um presente muito ruim pro Chico e me deixou ainda mais derrotado.

O prenúncio de uma segunda de trabalho extenso, que acabou acontecendo, esgotou meus limites físicos e emocionais. Fui salvo por Laura Braga.

Laura Braga está em cartaz, por pouco tempo, na Escola de Teatro da Unirio, com a opereta Mesdames de La Halle, de Jacques Offenbach.

Um alumbramento! Meus olhos secos marejaram quando ela entrou em cena e cantou uma ária lindíssima, de arrancar os mais entusiasmados aplausos da platéia. Nunca gostei tanto de Offenbach como agora, embora nunca tivesse escutado antes. 

Não vou ficar detalhando muito, porque o pouco que conheço de ópera são trechos das grandes. Comentarei apenas que saí dali muito leve, saí renovado e feliz, acreditando que há sim, esperança para a humanidade. 

Laura, admiro muito sua dedicação, sua superação, sua firmeza. Cada vez que a vejo, só penso no orgulho que tenho de ser seu pai. Porque você foi além do nosso interior tão pequeno, dos nossos limites, Estarei sempre a seu lado, porque você merece todo meu respeito e admiração. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Ao que vai chegar

"Sei que me despeço antes do desfecho, antes que a dor ou o dia desfira.

A noite afinal dispara. Vou no vácuo, no intervalo harmônico entre dor e nada, acuado em corpo único, vivendo do próprio fígado"

Armando Freitas Filho, morto ontem

Se quer vir, aproveita que eu estou desarmado. Em muito breve, estarei livre das amarras que me adoeceram tanto nesses últimos dez anos.
Se vier, é preciso que você entenda que os tempos são outros. Embora a lucidez e a percepção tenham melhorado, já não tenho a memória prodígia que tinha, já não tenho o mesmo vigor físico, e tudo costuma doer um pouco mais do que doía.
Passei a vida contaminando as pessoas com a letra e a música que leio e ouço. Hoje ninguém quer prestar atenção num poema. Se vier, venha disposta a compreendê-los, porque compreendendo, me entenderá melhor. Porque sou parte encarnada de tudo que li e ouvi.
Traga seu coração afeito à boas horas de conversa, o riso frouxo, a mania de ler Augusto Cury. Talvez seja tarde pra gostar de uma auto ajuda, mas quem sabe o tempo?
Procure se acostumar com meu cansaço, com minha insônia (e consequentemente a minha necessidade de tomar meus remédios no horário), com meu desânimo. O tempo só anda para frente e passa quando menos a gente espera. Não fique reclamando  quando me sinto velho, pois afinal, a velhice chegou mesmo.
Não se surpreenda se me chateio demais com pequenas coisas. Minha fragilidade para declinar frente aos desvios é uma marca da minha história. Gostaria de ter sido mais reacionário, de brigar mais pelas minhas crenças, de enfrentar mais os enchovalhos que enfrentei. Agora é tarde.

Finalmente, como você já percebeu, aprenda a amar aqueles que amo. Ficaram muito poucos, mas é tudo que eu tenho na vida.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O homem mulher







Uma definição

amor é uma luz à
noite atravessando o nevoeiro

amor é uma tampinha de cerveja
pisada no caminho do banheiro

amor é a chave perdida da sua porta
quando você está bêbado

amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos

amor é um gato esmagado


amor é o velho jornaleiro na
esquina que desistiu 

amor é o que você acha que a outra
pessoa destruiu

amor é o que desapareceu junto
com a era dos navios encouraçados

Charles Bukowski



"Esse menino crescido

Que tem o peito ferido

Ainda vivo, não morreu"

Torquato Neto

Foi no início dos anos 80, quando eu queria saber bem mais do que meus vinte e poucos anos, que comecei a ler os autores visceralistas. Visceralista é um termo cunhado por Roberto Bolaño no livro Detetives Selvagens, para nominar os poetas que escreviam com as vísceras. Acabei estendendo o conceito para outros escritores.

Esses livros vieram pelas mãos de um amigo mineiro que morava comigo e tinha uma disciplina rígida para leitura. Tentei imitá-lo na época, mas sou muito desorganizado e acabo por abandonar livros pela metade ou deixá-los no plástico para quem sabe um dia. Não importa, desarrumado ou não, é bom saber que eles estão lá.

Esses livros em geral eram publicados pela Editora Brasiliense, em geral eram traduzidos por Paulo Leminski ou do próprio Leminski, cujos poemas já eram extraordinários

Mas tudo começou com Charles Bukowski. Seus romances semi autorais, de palavreado xulo e ao mesmo tempo sublime, fizeram a cabeça do menino acostumado com Machado, Vinícius, Cecília, Cabral, Pessoa e Bandeira. Foi nessa época que eu li, de um átimo, Misto quente, Factotum, Cartas na rua e Mulheres. Com o tempo li muitos outros, mas nunca tive o mesmo entusiasmo dos quatro primeiros.

Li os beatniks Jack Kerouac, Allen Ginsberg e Willian Burrougs. Gostei mais do terceiro do que dos dois, mas nenhum me entusiasmou tanto quanto Bukowski. 

Depois vieram John Fante e Salinger. O apanhador no campo de centeio estreitou a minha geração com a de Salinger, vi muitas semelhanças ali. Pergunte ao pó, de Fante, também já foi lido e relido. Embora não tenha tempo, adoro reler meus livros, rever filmes e séries. Um livro nunca é lido da mesma maneira duas vezes.

Foram esses autores que me levaram aos brasileiros Sérgio Santanna, Ruben Fonseca, Carlos Heitor Cony. Para as mais íntimas, adoro ler o homem mulher, de Sérgio Santana, título desse texto.

E (quem sabe influenciado pelo encanto de tudo que li), estou lendo Dorrit Harazim, o instante certo. Nossa melhor cronista fala sobre as fotos marcantes da humanidade, como essa aí de cima.


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Camarão em Muriaé

Embarco para São Paulo sabendo que depois de amanhã estarei de volta sofrendo mais com a Ponte Rio Niterói do que com a Ponte Aérea. Nos dias de hoje, mesmo com a espera, o checkin e o embarque, fica mais rápido ir a São Paulo do que ir a Niterói. Principalmente depois das 18.

Embarco para a terceira viagem depois de duas que representaram duros contrastes: a primeira (Rosal), muito leve; a segunda (Angra) muito pesada Lembro que chegamos a Rosal e fomos passear pela rua a procura de predicados da culinária local. Em Angra, fui direto para o quarto e só saí dali para o evento e para comer. Foram dois finais de semana opostos entre si.

Em Rosal a calmaria dos amigos, a comunhão com a boa música, a noite virada e mesmo assim, bem dormida. Em Angra, trabalho e a tentativa de me harmonizar com meus colegas..

Depois de anos indo a SP toda semana (antes da pandemia) e achar inclusive que um dia ficaria por lá, retorno agora com uma ida mensal e pouco necessária. Desenvolvemos, eu e as meninas que trabalham comigo, uma parceria de trabalho robusta e afetiva, que torna meio sem sentido essa ida. .

Ao meu lado no vôo, a moça lê A arte de ligar o foda-se. Lembrei da minha única leitora, que adora livros de auto ajuda.

Em SP, além de trabalho, tem o pastel de nata da Quinta do Marquês, tem a Pop's Discos, tem a amizade da Verinha e tem o frio. Com o passar dos anos, virei um homem que sente muito frio. Atrapalhou muito o fato de o quarto escolhido pelo Hotel Central Park não tinha ar quente. Passei frio na primeira noite, mas na segunda me colocaram num quarto quentinho.

Não importa se barca, uber ou avião, tenho ouvido uma playlist que começa com Dori Caymmi - Dos Navegantes, A moça da taça, Rio Amazonas. Depois, Vital Farias, Era casa, era jardim e Caso você case, depois Nana, Confissão. Não sei de onde vieram as canções. É como se fosse um aleatório consciente Quando estou feliz, coloco Itamar e as Orquideas para alegrar meus ouvidos. 

Não fui ao Rock in Rio ver os sertanejos (??), acho que apelaram, e sonho que na próxima semana, consiga ir com meus amigos a Muriaé, comer camarão e torresmo de traíra. Amo as coisas simples. 

O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos p...