sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Perto do coração

 Para ler ouvindo a valsa "Perto do coração", de Nelson Ayres


Amigo, ano passado nessa mesma data, estávamos passeando pelas ruas de Rosal.

Observávamos atentamente às montagens das barracas, a passagem de som, e conversávamos muito sobre nada. Procurávamos algum doce nas padarias ou nos bares da cidade.

Rosal era o único lugar que dava para apertar o botão de desligar. E como apertar esse botão é importante para quem trabalha tanto! Era também o único lugar para se deixar levar pela música e ficar até o último show, que varava a noite. 

Da melhor música brasileira já feita. Era um encantamento porque pouco importava o Mundo lá fora, tudo que a gente fazia era aproveitar o máximo possível. Não existia câncer, não existia Donald Trump, pouco importava que o algodão do Seridó fosse o melhor do Mundo* 

E não faltou nem uma namorada fake para enfeitar nossa noite. Uma namorada fake dos tempos de criança, que conservou o viço da meninice. Uma família inteira que migra para Rosal durante o festival, que nos acolheu carinhosamente.

E quando Silvério Pontes irrompeu do palco para a platéia tocando o Carinhoso, toda a cidade parecia um uníssono alumbrado com o poder transformador da canção. O choro mais manjado parecia inédito e São Pixinguinha estava ali sentado num canto: Meu coração, não sei porquê......

E quando os sanfoneiros desfilaram pela rua da cidade parecíamos crianças acompanhando aquele cortejo.

E comíamos pastelões e podrões e tudo era festa, tudo era farra honesta. Abstêmios, ficávamos embriagados por poesia e música sem qualquer cerimônia. E comprávamos cafés premiados para presentear os amigos. E alternávamos pelos dois palcos para assistir na íntegra, aos shows de choro e  sanfona. Éramos felizes ali. 

Esse ano não tenho mais Rosal. Um isolamento imprevisto tomou conta dos meus dias. Resta esperar que outros setembros cheguem, e que a gente possa ser feliz ali outra vez. 

* Bandeira, Não sei dançar. 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Ah!, Domingo, seu danado!

Meus domingos continuam vazios e frios. Apesar de estar com meus filhos, eu continuo me sentindo sozinho por inteiro. A doença só veio piorar essa condição. 

Melhora um pouco quando tem um jogo. Piora quando o Fluminense perde. 

No final das contas, eu prefiro trabalhar. Participar das reuniões, responder aos colegas por qualquer via, fazer o dia passar mais rápido. No domingo, isso é impossível.

Sábado também, mas sábado eu consigo driblar porque é quando descanso da semana pesada. Tento fazer o que posso para melhorar a rotina. Não mais do que levar meus filhos para comer e passear no shopping. 

Domingo era o dia de juntar a família. Era dia de conversar, planejar o almoço, as viagens, os passeios, comemorar as datas, viver. Hoje não vivo mais. Tento disfarçar para que eles não percebam a imensidão da dor e do vazio.

Minha vida foram erros em sequência. Cheguei aqui depois de muitas esquinas duras e difíceis. Me equivoquei demais. Eu vi um sim onde os outros viram não. Os outros estavam certos. 

Esses últimos dias me reservaram pequenas alegrias. A participação do Fluminense no Mundial de clubes foi uma delas. Embora tenha se encerrado hoje, vibrei muito com as vitórias nas oitavas e nas quartas. Queria que o time fosse mais além, mas tenho que concordar que o outro mereceu ganhar. 

Saímos no lucro. Tanto no lucro financeiro quanto no orgulho de ver nosso time jogando. Eu e meu filho. Todas as minhas alegrias que o futebol me entrega, eu divido com ele. Nos nossos silêncios, é ele que trás o grito.

Eu prometi a ele que iria voltar a escrever se o Fluminense vencesse. 

Pois bem. Não consigo ir além dessa autobiografia em três linhas. 

Mas saiba que, lá no fundo, no meio dessa turbulência toda, ficar na torcida com você significa muito. 

Outro dia eu conto das outras pequenas alegrias. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema.

Paulo Mendes Campos


O amor acaba. No meio do luto, no meio da dor, no meio do enfrentamento. Acaba porque não há mais sentido. Porque o conjunto das muitas diferenças não aproximou o amor. Acaba depois de muitas recaídas. Acaba porque não há mais espaço para o amor. Cheio de filhos, esperanças, desagravos, o amor acaba. Acaba porque nem a rotina favorece e não há mais tempo para o amor. Acaba quando não há mais viagens planejadas nem rosas para surpreender. Acaba quando as distâncias se acomodam a ponto ser mais cômodo cada um ficar no seu espaço. Acaba quando não há mais tempo para o amor. Acaba quando nada converge e tudo afasta. Acaba quando os destroços são inevitáveis e já não há qualquer possibilidade de diálogo. Quando emudece. Quando o silêncio se transforma em raiva. Quando a raiva é algo doentio. Acaba sem um até logo. Acaba por mensagem. Acaba quando não há qualquer chance de ser restaurado. Acaba quando não há mais nada para dividir. Acaba no meio de uma dor estrangulada, que não cicatriza.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Clarisse, Aldir e Cristóvão

Acredito que tenha sido um dos poucos privilegiados a ouvir Novos traços, o disco lançado por Clarisse Grova sobre a obra de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos em 1997. 
Até onde eu saiba, não tocou no rádio, não foi alardeado pela crítica, e parece pertencer a um seleto grupo de "others" como eu. 
Enquanto nossas rádios, com honrosas exceções, se limitam a tocar a música fácil, ouvir Novos Traços se tornou uma bênção nos útimos anos.
O disco começa com o enredo Cravo e Ferradura, com uma batida crescente que vai tornando cada vez mais vívida a canção: "um balbucio , um mugido, um som de tragédia e circo, um som de linha de pesca, som de torno e maçarico", coisa que só a letra do Aldir consegue expressar. 
A segunda música é A gente chega lá. Me agradam muito os versos: "Samba, meu amigo verdadeiro, abraça o Baden e o Paulo César Pinheiro, diz a eles que despedaçado, é que eu me sinto inteiro pra recomeçar". 
"O avô em feira,estuprou robô cavalo, sangrou macho na peixeira, pôs a honra rente ao ralo", versos do baião Um avô pefelino, dedicado a um velho senador baiano. 
Gosto especialmente de Não tava pra peixe, e cheguei a aprender suas notas, mas a preguiça mental acabou levando da minha memória fóssil. 
A verdade é que 27 anos depois, esse disco continua fresco, surpreendente e emociona sempre que é tirado da gaveta. 

Nesses dias assisti a duas peças que foram alumbramentos para mim, tal qual Novos traços: a peça "Não entrego não", com Othon Bastos, 91 anos, irrepreensível e o filme "Ainda estou aqui", com Fernanda Torres. 

Uma coisa leva a outra e a peça acabou me trazendo de volta o disco Georgete Fadel canta Gianfrancesco Guarnieri. Não paro de ouvir, mas aí já será motivo para outra conversa.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

ET CÉTERA


"Pois percebi que o que penetra

Não é o total

Nem principal

é o ET CÉTERA"

Tatit e Ná

Disclaimer é o que há de melhor no streaming atualmente. Principalmente por trazer de volta o ator Kevin Kline, que há muito não via, mas também por Cate Blanchett e Sacha Baron Cohen. Dirigida por Alfonso Cuarón de forma cirúrgica e densa, sem economias, o drama familiar soma muitos pontos para  a Apple TV. Ninguém tem feito nada tão bem produzido nem com tanto capricho quanto o canal.

Também na Apple TV, a ótima Falando a real, com Harrison Ford fazendo um terapeuita com Parkinson. Estou vendo devagar, mas gostando. Já dos filmes produzidos por eles, ainda não consegui terminar Lobos e nem Os provocadores. Acabei parando no meio.

Estou vendo e gostando de Pinguim (HBO - não consigo chamar MAX!). Colin Farrel é sujo como o personagem, que se perde (e se encontra) a cada episódio. O episódio quatro é em particular uma pequena obra prima. Não dá para passar desapercebida a ótima atuação de Cristin Milioti como Sofia Gigante. 

Passei três dias intensos em São Paulo. Deu tempo para rever e jantar com amigos queridos, mas especialmente deu tempo para ver Ná Ozzetti e Luiz Tatit. Gosto muito dos dois, e dessa vez, aguardei o autógrafo. O show da dupla foi valorizado pela participação de duas vocalistas das quais não me lembro do nome, mas o que imperou foi a música de Tatit e a voz de Ná. 

Acho muito estranho que entre meus amigos queridos, ninguém saiba sequer quem são os dois. Acompanho desde os primeiros discos do Rumo. O Rumo ao vivo e o Rumo aos antigos foram tranformadores na minha visão da música.

Tenho lido, e gostado bastante, as crônicas do Aquiles do MPB4 no site do IMMuB (https://immub.org/noticias/colunista/aquiles-reis). Aquiles escolhe os discos pelo gosto musical. Não espere críticas,  mas resenhas muito boas e escritas com uma leveza muito grande. Trabalhos novos, pouquíssimos divulgados, são desvendados com acolhimento pelo Aquiles.

Semanas extensas de trabalho acompanhadas de pouco ou nenhum reconhecimento, finais de semana que não cabem no descanso (quando se vê, já é segunda feira de novo), um grande esgotamento ocupando todos os espaços. Vamos caminhando.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Um riso de aurora acolheu meu ocaso

 


Meus domingos são tristes em geral. Esse não foi diferente. Apesar do aniversário do meu fiho e das comemorações, terminei o dia amargo e travado. No fim da tarde, mais uma derrota do Fluminense soou como um presente muito ruim pro Chico e me deixou ainda mais derrotado.

O prenúncio de uma segunda de trabalho extenso, que acabou acontecendo, esgotou meus limites físicos e emocionais. Fui salvo por Laura Braga.

Laura Braga está em cartaz, por pouco tempo, na Escola de Teatro da Unirio, com a opereta Mesdames de La Halle, de Jacques Offenbach.

Um alumbramento! Meus olhos secos marejaram quando ela entrou em cena e cantou uma ária lindíssima, de arrancar os mais entusiasmados aplausos da platéia. Nunca gostei tanto de Offenbach como agora, embora nunca tivesse escutado antes. 

Não vou ficar detalhando muito, porque o pouco que conheço de ópera são trechos das grandes. Comentarei apenas que saí dali muito leve, saí renovado e feliz, acreditando que há sim, esperança para a humanidade. 

Laura, admiro muito sua dedicação, sua superação, sua firmeza. Cada vez que a vejo, só penso no orgulho que tenho de ser seu pai. Porque você foi além do nosso interior tão pequeno, dos nossos limites, Estarei sempre a seu lado, porque você merece todo meu respeito e admiração. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Ao que vai chegar

"Sei que me despeço antes do desfecho, antes que a dor ou o dia desfira.

A noite afinal dispara. Vou no vácuo, no intervalo harmônico entre dor e nada, acuado em corpo único, vivendo do próprio fígado"

Armando Freitas Filho, morto ontem

Se quer vir, aproveita que eu estou desarmado. Em muito breve, estarei livre das amarras que me adoeceram tanto nesses últimos dez anos.
Se vier, é preciso que você entenda que os tempos são outros. Embora a lucidez e a percepção tenham melhorado, já não tenho a memória prodígia que tinha, já não tenho o mesmo vigor físico, e tudo costuma doer um pouco mais do que doía.
Passei a vida contaminando as pessoas com a letra e a música que leio e ouço. Hoje ninguém quer prestar atenção num poema. Se vier, venha disposta a compreendê-los, porque compreendendo, me entenderá melhor. Porque sou parte encarnada de tudo que li e ouvi.
Traga seu coração afeito à boas horas de conversa, o riso frouxo, a mania de ler Augusto Cury. Talvez seja tarde pra gostar de uma auto ajuda, mas quem sabe o tempo?
Procure se acostumar com meu cansaço, com minha insônia (e consequentemente a minha necessidade de tomar meus remédios no horário), com meu desânimo. O tempo só anda para frente e passa quando menos a gente espera. Não fique reclamando  quando me sinto velho, pois afinal, a velhice chegou mesmo.
Não se surpreenda se me chateio demais com pequenas coisas. Minha fragilidade para declinar frente aos desvios é uma marca da minha história. Gostaria de ter sido mais reacionário, de brigar mais pelas minhas crenças, de enfrentar mais os enchovalhos que enfrentei. Agora é tarde.

Finalmente, como você já percebeu, aprenda a amar aqueles que amo. Ficaram muito poucos, mas é tudo que eu tenho na vida.


Perto do coração

 Para ler ouvindo a valsa "Perto do coração", de Nelson Ayres Amigo, ano passado nessa mesma data, estávamos passeando pelas ruas ...