Eu penso que meu filho poderia estar dentro dele. Qualquer um deles, mas especialmente o menor. Penso no susto, na dor e no trauma que o acidente traria. Penso no que seria para o resto da sua vida a experiência de um mergulho solitário na ladeira e o atropelamento surdo da lateral do ônibus vermelho.
Eu penso que poderia não ter sido o ônibus vermelho. Poderia ter sido um carro menor e poderia ter feito vítimas. Pessoas que eu nunca vi e agora vejo feridas por um descuido meu e um erro do carro. Penso no quanto seria doído para mim encarar essas pessoas.
Eu penso no meu irmão mais novo, que já não existe, se desgarrando da minha mão e se atirando na travessia da Praia de Icaraí num longínquo 1973. Eu só conseguia enxergar e ainda tremo quando penso nisso, um carro enorme atropelando meu irmão, embora nunca tivesse acontecido de fato.
Eu penso no meu filho sendo atropelado por uma bicicleta em Amsterdam e seu corpo coberto de sangue.
Eu penso no teleférico de Bariloche, quando perdemos o tempo de pegar o assento e nos esborrachamos na neve.
Não me ocorre pensar no prejuízo de ter um carro amassado, de ter que pagar por uma franquia absurda, de manter minha consciência limpa e ainda conseguir, mesmo com COVID e mesmo depois do susto, viajar por 280 quilômetros até Miracema.
Não me ocorre o fato de ter que ficar sem carro um bom tempo. Para isso existe ônibus, táxi, uber, avião. O carro, que já foi vital em outros tempos, agora é o que menos importa nessa hierarquia.
Eu penso na minha miséria, na minha dor, na minha falta de governo e na minha desvontade de conversar com quem quer que seja sobre tudo isso.
Eu penso na morte lenta que é essa vida diária. E como dói.
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