segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Em busca do tempo possível

Se quiser viajar conosco de navio, tem que se alinhar com nossa rotina. Em primeiro lugar, nada de noite de branco, nada de noite do comandante, nada de noite dos solteiros. A festa brega passou longe de nossos ouvidos. As aulas de dança, o spa, os restaurantes não inclusos no pacote, nem sabíamos onde eram. Nada de jogos de azar que custam um absurdo e nunca dão em coisa alguma. O máximo que nos permitíamos era tomar um coquetel de frutas nos decks e esticar um pouco a conversa. Íamos à piscina quando tinha Sol e abusávamos daquelas banheiras de hidromassagem que têm em todo navio. E também íamos ao teatro, na sessão das 19:30 , que era para não atrapalhar a hora de dormir. Os espetáculos alternavam música e circo em dias diferentes. As músicas eram quase todas canções dos anos 70 e 80. O grupo de cantores era bom, especialmente duas cantoras paraguaias. Agradou especialmente o trio de contorcionistas. Devo ter ido dezenas de vezes ao circo com meu pai, mas nunca com meu filho. Esses pequenos espetáculos circenses resgataram um pouco do menino que fui e compensaram esse ponto da nossa vida comum.

No mais, muita leitura e séries previamente baixadas no IPad. Li, de ponta a ponta, o extraordinário O Lugar, de Anne Arnaux, e deu vontade de escrever sobre meu pai. Tenho história para contar sobre nós, mas minha escrita é pobre e eu não me atreveria a entrar na intimidade da nossa vida sem um mínimo de talento, que não faltou a Anne. Poesias de Mário de Andrade, livros de João Tordo, Philip Roth e Raduan Nassar também ocuparam parte do tempo.

E vimos o Fluminense jogar mal e perder duas vezes: para o Botafogo e para o Volta Redonda. 

Das excursões que fizemos, a melhor foi a que não compramos: em Buenos Aires, descemos por conta própria e fizemos um roteiro pessoal, enxuto, mas eficiente e agradável, com direito a almoço no La Cabrera e compras na Florida. Continuamos gostando muito da cidade.

Fizemos excursões programadas pelo navio em Montevidéu, Punta del Este e Ilha Bela.

Não se pode comprar nada no Uruguai. Tudo é muito caro, a começar pela água mineral, cuja garrafa custava 25 reais. As oportunidades de compra também são poucas. O jeito foi aproveitar a paisagem. Não tenho esse fascínio que as pessoas todas têm por praças, museus, mausoléus, estátuas de general. Mesmo assim, anoto para não esquecer, que em Montevidéu passamos pela Praça da Independência, pelo Estádio Centenário, pelo senado, pela embaixada brasileira, mas não descemos no mercado para tomar um meio a meio recomendado pelo Lugarinho. Talvez tenha sido nossa maior falha nessa viagem.

Em Punta, visitamos museus, bairros nobres, e os lugares mais bonitos do Rio da Prata. Um museu em especial, o de Carlos Paes Vilaró, não tanto pelas esculturas e quadros, mas pelas esquinas que passamos e que tinham os nomes dos amigos do escultor: Ernesto Sabato, Vinicius, Pelé. Há possibilidade de que aquele disco do Vinicius, Toquinho e Maria Creuza tenha nascido ali. Foi muito ouvido na vitrola da Tia Cida. Acho que foi quando eu decorei o Soneto de Separação ali (quem não decorou de tanto ouvir?)

O tempo não contribuiu. Chovia e a falta de Sol desencantou a paisagem.

Mas não em Ilhabela. Ilhabela foi uma agradibilíssima surpresa. A cidade, o mirante, a cachoeira, a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, a viagem de escuna, tudo muito bonito e muito ensolarado. Ficou uma vontade de voltar com mais tempo.

O navio, diferente dos resorts, onde todos estão no mesmo nível, é dividido em categorias de um a cinco. A nossa era a terceira, que dava direito a uma cabine com varanda suficiente para nosso conforto. Boa cama, ótimo edredom. A comida não passa de razoável. As coisas triviais, como hambúrgueres e pizzas eram melhores de comer. Convivemos com a cortesia das camareiras, dos garçons, da tripulação em geral. Foram poucas as vezes que tivemos que enfrentar as filas e a indiferença dos atendentes para nos servir uma bebida.

Mais importante de tudo foi estarmos desconectados do Mundo. Sem zap, sem e-mail, pelo menos em 90% do tempo. Fiquei livre dessa doença de estar conectado e respondendo o tempo todo por alguns poucos nove dias, mas valeu.

Essa manhã, em que concluo essas notas (a penúltima manhã) , acordei muito cedo e o barulho forte do vento acabou por levar o restinho de sono. É triste pensar que Lucas faz dez anos hoje e não estaremos juntos. Esta sim, foi minha maior falha. Me enrolei na hora de escolher as datas e acabei comprando justo na semana do aniversário. Os poucos momentos em que fiquei triste nessa viagem foram a falta do Lucas e das meninas. De resto, meus silêncios de sempre em geral combinavam com os silêncios do menino.

Foi mais uma chance de passarmos um tempo juntos. No meio de famílias completas com muitos avós, netos e, possivelmente, bisnetos, nossa pequena célula composta de pai e filho até que não fez feio. Ano que vem, voltamos.

Nenhum comentário:

Travado

"Diferente o samba fica Sem ter a triste cuíca que gemia como um boi A Zizica está sorrindo Esconderam o Laurindo Mas não se sabe onde ...