quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Dois miados de gato

"- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo.
Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira
- Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me!
Deixem-me sossegar...
Noite sempre pelo meu quarto.
As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor
- Pelo menos era o sossego completo...
História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário!
Bom edrédon, bom fogo
- E não penses no resto.
É já bastante, com franqueza...
Desistamos.
A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim co'a breca!
Levem-me para aenfermaria!
- Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
Justo.
Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda
- E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica.
O menino dorme.
Tudo o mais acabou."

Mário de Sá Carneiro, Caranguejola, Paris, Novembro de 2015
Comecei a escrever esse texto do vôo 3904 das 16:30 de ontem que me trouxe de volta ao Rio. Nesses tempos corridos, a mesinha do banco da frente pode ser uma boa alternativa para a palavra escrita. Nesse momento, Martha Wainwright invade meus ouvidos com uma versão desconcertante de All by myself, não aquela baba velha, mas o fox clássico dos anos 20.
Nesse fim de ano, apareceu muita coisa boa no Itreco. A que mais me supreendeu foi Fôlego. de Filipe Catto. Ouvi Gardênia Branca na cantareira e voltei umas dez vezes: é um legítimo tango de zona. Amo os tangos e os bolerões de zona. Filipe canta com uma dor cortante. Já passaram pelo aleatório, com ótimos fluidos auditivos, Adoração (que ouvi no rádio por acaso dia desses) e 2 perdidos do Arnaldo Antunes. Um disco confessional, lupiscínico, lembra o primeiro da Angela Ro Ro, que furou na vitrola em outros tempos.
Devagar, o duplo letrado de André Memahri também vai chegando aos ouvidos. É um duplo difícil, precisa de mais apuro auditivo. Diferente de Filipe, mais fácil de gostar.
Ouço ainda o concerto de Keith Jarret no Rio (sublime!) e um novo de Gianluigi Trovesi e Gianni Cóscia, que achei dando sopa na rede, também muito bom.
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Sinto-me bem escrevendo às 4 da madrugada de um acordar nãoseiporque. Acordei pensando em nós, nas surpresas que a vida manda quando menos se espera. Quando já se acostumou ao fogo lento e a se contentar com pouco. Com você, nada é pouco. Tudo é sublime!

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